As várias vidas do monge brasileiro que desafiou duas ditaduras

As várias vidas do monge brasileiro que desafiou duas ditaduras

14 de abril de 2024 0 Por redacao

“Descer uma escada encapuzado não é uma boa sensação”, lembra o monge budista brasileiro Ademar Kyotoshi Sato.

Naquele dia, ele tinha 31 anos de idade e ainda não era monge.

Fugindo da ditadura no Brasil, havia abandonado o posto de professor de Economia da USP e se mudado para o Chile, onde passou a assessorar o governo do socialista Salvador Allende em 1971.

Até que ele virou alvo da repressão após queda do presidente chileno em um golpe militar, em 1973.

Na primeira noite depois do golpe, Sato foi sequestrado à noite em sua casa, na capital chilena Santiago, por um grupo civil de extrema direita.

Organizações como aquela vinham promovendo atentados para desestabilizar o governo Allende, além de perseguir militantes de esquerda.

“Estavam me levando para os Andes”, conta Sato em voz pausada e com um sorriso que mantém até nos momentos mais dramáticos da entrevista, concedida à BBC em seu apartamento, num bairro arborizado de Brasília.

A cordilheira que margeia Santiago era um dos locais de desova de corpos de intelectuais, estudantes e operários que o novo regime via como inimigos. Mas, na saída da cidade, o carro foi parado em uma blitz.

Como o Chile estava sob estado de sítio e o grupo não tinha permissão para deixar a cidade, Sato foi entregue aos policiais. “Aí me jogaram numa delegacia”, conta.

O brasileiro passou a noite junto de vários outros militantes políticos recém-capturados. “As pessoas eram chamadas, ouvia-se um tiro fora, e a pessoa não voltava”, ele diz.

Foi então que, encapuzado, Sato foi forçado a descer uma escada.

“Me tiram o capuz, e eu vejo um pelotão de fuzilamento na minha frente”, conta.

Eram cerca de dez homens com metralhadoras, ele diz.

Um militar se apresentou para interrogá-lo, e Sato perguntou por que havia sido detido.

“Porque você é o assessor chinês do Allende”, respondeu o oficial. Acharam que Sato fosse um agente do governo comunista da China.

Por sorte, o brasileiro portava o passaporte diplomático com que entrara no Chile anos antes, como estagiário da Cepal, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, um dos órgãos regionais da ONU.

“Daqui a pouco, o oficial volta e começa a me chamar de doutor”, ele diz. Ao conferir o passaporte, o militar reconheceu o erro e pediu desculpas ao brasileiro.

Ele não sabia que, embora Sato não fosse um comunista chinês, tinha sido um dos colaboradores estrangeiros mais próximos do governo Allende, encarregado de coordenar operários em fábricas abandonadas por patrões.

Quando Sato foi liberado pelo oficial, fazia 72 horas que os militares haviam derrubado Allende – que, cercado no palácio presidencial La Moneda, matou-se com um tiro no rosto.

Desde então, o economista já havia ficado perto da morte duas vezes. Ele conta que ficaria mais duas nos dias seguintes, até finalmente conseguir fugir do Chile rumo ao Brasil.

“Em cinco dias, passei por quatro situações de morte certa”, diz.

A temporada no Chile – da proximidade com Allende à mira de um pelotão de fuzilamento – representou um dos períodos mais marcantes na trajetória do brasileiro.

Em 82 anos de vida, Sato testemunhou dois golpes militares, assessorou o movimento sindical que projetou Luiz Inácio Lula da Silva e participou do primeiro governo civil no Brasil após a redemocratização.

Também foi dirigente estudantil, acadêmico e membro da Juventude Universitária Católica.

Aos 56 anos, aposentado do serviço público e abalado por duas tragédias familiares, mergulhou no budismo e virou monge.

Hoje investiga se há valores que atravessem culturas e religiões – pesquisa que já o fez visitar aldeias indígenas no Acre, a experimentar ayahuasca e a visitar o ex-presidente do Uruguai Pepe Mujica.

Filho da Segunda Guerra

Sato nasceu em São Paulo em janeiro de 1942, meses após seus pais chegarem de navio do Japão.

Sua mãe pertencia a uma família aristocrática decadente. Já o pai nascera no Brasil, mas, filho de japoneses, viajou ao Japão para servir no Exército Imperial Japonês.

O casal emigrou durante a Segunda Guerra Mundial, pouco antes do rompimento das relações diplomáticas entre o Brasil e os países do Eixo, incluindo o Japão.

“Eu me lembro muito bem que os meninos da vizinhança corriam de pedras e pau na mão gritando: ‘japinha, volte para casa, a sua casa é o Japão, o Japão perdeu a guerra'”, diz Sato.

Os pais falavam pouco de política em casa – ele diz que só se interessou pelo assunto ao entrar no curso de Economia da Universidade de São Paulo (USP), no início dos anos 1960.

Quando os militares tomaram o poder em 1964, Sato era um dos diretores da UNE, a União Nacional dos Estudantes.

Ele soube do golpe pelo rádio, quando estava na sede da UNE em São Paulo. “Fiquei sereno”, conta, “mas sabia que, dali para frente, talvez se iniciasse uma outra fase da história do Brasil”.

Sato se formou em 1964 e virou professor de Economia da USP no ano seguinte.

“Os alunos participavam muito de movimentações contra a ditadura. E, de repente, um aluno sumia”, ele diz.

Sato começou a visitar alunos presos no Dops (Departamento de Ordem Política e Social), um dos principais órgãos de repressão da ditadura.

“Passei a ser seguido, [queriam saber] quem era aquele professor jovem que visitava os alunos presos”, lembra.

Alguns de seus colegas professores também haviam sido detidos – caso do sociólogo Florestan Fernandes, com quem Sato tivera aulas.

Sentindo-se ameaçado, o economista se inscreveu na seleção para uma vaga de estagiário na Cepal, comissão da ONU sediada no Chile.

A organização vinha acolhendo vários intelectuais que fugiam da ditadura no Brasil. Um deles era o economista José Serra, que décadas depois se elegeria governador de São Paulo. Outro era o sociólogo – e futuro presidente – Fernando Henrique Cardoso.

Sato passou na vaga e se mudou para Santiago em janeiro de 1970. Oito meses depois, o médico Salvador Allende, do Partido Socialista, ganhou as eleições presidenciais do Chile.

“Ele era um burguês, gostava de tomar uísque, de tomar chá, mas tinha uma mentalidade socialista”, diz Sato.

Os dois só se aproximaram no segundo ano do governo, depois de uma visita do líder socialista cubano Fidel Castro ao Chile.

Até então, Sato estava alinhado às diretrizes da Cepal – organização que, embora abrigasse esquerdistas, estava longe de ser revolucionária. Afinal, era um braço da ONU, criada sob influência dos EUA no pós-Segunda Guerra para promover a integração global.

Mas algo mudou quando Sato viu o cubano falar. Na sede da Cepal, diante de um auditório lotado, Fidel elogiou a comissão por realizar “um importante papel no campo das ideias e na divulgação de realidades”.

Mas o cubano também criticou a organização em um de seus pilares: “Com quem vamos nos integrar? Com um monopólio norte-americano? Com interesses particulares? Como é possível essa integração?”, questionou.

Sato achou que Fidel tinha um ponto e resolveu se engajar na construção do socialismo, acercando-se de Allende.

O presidente chileno enfrentava graves problemas. No campo, enquanto milhares de fazendas eram expropriadas para a reforma agrária, camponeses e fazendeiros se enfrentavam.

Nas cidades, empresários assustados com um programa de estatizações abandonavam suas fábricas. Houve desabastecimento, e a inflação explodiu.

“Ficou uma quantidade enorme de trabalhadores sem patrão”, lembra Sato.

O brasileiro propôs a Allende implantar nas indústrias o planejamento participativo, um método inspirado na obra do educador Paulo Freire (1921-1997) na qual os próprios operários participam da gestão.

Ele diz que Allende concordou e lhe cedeu um jato para que visitasse as fábricas espalhadas pelo país. O presidente tinha pressa: as turbulências se agravavam, e grupos pró e contra o governo se combatiam nas ruas.

“Começou a dar certo, mas aí veio o golpe”, diz Sato.

Em 11 de setembro de 1973, militares cercaram o palácio presidencial La Moneda e forçaram Allende a renunciar.

Quando Sato soube da movimentação das tropas, quis se juntar a Allende e vários de seus ministros no palácio. Mas não conseguiu, pois o edifício estava cercado por militares.

Como Allende se recusava a deixar o palácio, um caça da Força Aérea Chilena passou a bombardear o edifício.

“Tivesse chegado cinco minutos antes, talvez os portões não estivessem bloqueados, e eu entrasse para não sair mais”, diz.

Quando as tropas lideradas pelo general Augusto Pinochet tomaram o prédio, Allende foi encontrado morto. Segundo uma investigação concluída em 2011, o presidente se matou antes que os militares entrassem.

Ali começava o suplício de Sato: primeiro sequestrado por um grupo extremista, depois levado à prisão em que se deparou com um pelotão de fuzilamento.

Após ser salvo graças ao passaporte da ONU, Sato ainda foi visitado por policiais militares em casa, na noite seguinte. Ali ele guardava, atrás de uma estante, documentos que detalhavam sua cooperação com o governo Allende.

“O policial sobe na escadinha, espia lá dentro e diz: ‘não tem nada aqui, não'”, conta Sato. O brasileiro diz acreditar que o agente era simpático a Allende e se mantinha na corporação “para tentar livrar a cara dos companheiros”.

Sato ainda passaria por um último apuro. No dia seguinte, quando foi buscar um visto de saída para voltar ao Brasil, ouviu de um funcionário público que seu nome estava numa lista de pessoas impedidas de deixar o Chile.

O funcionário, diz Sato, ameaçou lhe enviar ao Estádio Nacional – arena que abrigou milhares de presos políticos depois do golpe no Chile, e onde vários deles foram torturados e executados.

Então Sato diz ter reconhecido um policial que passava pelo corredor – era o mesmo que, na noite anterior, examinara a estante em sua casa.

Chamado por Sato, o policial confirmou que a polícia visitara o brasileiro e não achara nada comprometedor. O visto foi emitido, e Sato voltou ao Brasil.

Sob Pinochet, o Chile viveria uma ditadura militar até 1990. Em 2011, uma comissão do governo chileno calculou em 40 mil as vítimas do regime.

Dessas, cerca de 3 mil desapareceram ou foram mortas por agentes do Estado.

O retorno ao Brasil

Quando voltou ao Brasil, Sato resolveu morar na Bahia por achar que, ali, seria menos visado. O ano era 1974, e o Brasil também ainda estava sob uma ditadura.

Ele recebeu um convite para trabalhar na gestão de Mário Kertész na prefeitura de Salvador, e ali ficou.

Sato viveu, então, duas tragédias na família num curto intervalo.

Primeiro, a morte de seu único irmão, na época com 30 anos, num acidente de carro. No ano seguinte, um dos filhos de Sato, que iria completar 8 anos, morreu após sofrer um aneurisma cerebral.

“Entrei numa depressão profunda”, ele recorda.

As perdas o estimularam a voltar a São Paulo para ficar perto do resto da família. Mas também havia outro motivo para a mudança.

Sato estava entusiasmado com o sindicalismo que ganhava força no ABC Paulista e via o movimento como capaz de acelerar a queda da ditadura.

Ele conseguiu um emprego no Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas de Estudos Econômicos), órgão que assessora os sindicatos, e conheceu o torneiro mecânico Luiz Inácio da Silva, o Lula.

Sato acompanhou o célebre discurso de Lula no estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, em 1979. Cerca de 200 mil operários de indústrias da região haviam decidido entrar em greve em busca de um aumento salarial.

As atenções se voltavam para o metalúrgico de 33 anos que coordenava o movimento grevista. Sato diz que, naquele dia, Lula o procurou.

“Ele disse: ‘Senta aqui, Sato, vamos conversar, estou nervoso. Estou acostumado com a vida sindical, mas me disseram que hoje vem a imprensa do mundo todo'”, ele conta.

Começava ali uma longa amizade. Em 2018, Sato visitou Lula quando o petista estava preso em Curitiba. Os dois se reviram pela última vez no ano passado, na cerimônia de posse presidencial.

Redemocratização

Em março de 1985, a posse de José Sarney na presidência marcou o fim da ditadura.

Sato se mudou para Brasília para trabalhar como assessor de um ex-aluno – o economista João Sayad, nomeado ministro do Planejamento do governo Sarney.

Depois o economista foi transferido para um órgão subordinado ao ministério, o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), onde trabalhou até se aposentar, em 2006.

Mas, mesmo antes de deixar o serviço público, a vida de Sato já tomava outros rumos – em parte, por conta da perda do irmão e do filho anos antes.

Em 1994, ele entrou pela primeira vez no Templo Shin-Budista Terra Pura de Brasília, uma imponente construção em estilo tradicional japonês na Asa Sul.

Um monge japonês falava aos presentes em japonês.

“Ele dizia: ‘Compaixão do Buda é como amor de mãe, porque a mãe está sempre nos salvando. Você ia puxar a panela, ia se queimar de forma grave, quando sua mãe vem não sei da onde e te salva’. Poxa, isso me chamou a atenção.”

Sato sentiu que talvez o budismo pudesse ajudá-lo a lidar melhor com as perdas familiares.

Ele passou a estudar a religião e a se oferecer como intérprete do monge, que não falava português.

Sato conta que, até então, nada sabia sobre o budismo – apesar dos laços familiares com o Japão, onde a religião é bastante popular.

Antes, era cristão e chegou a integrar a Juventude Universitária Católica, um movimento católico de esquerda.

Os estudos de Sato sobre o budismo incluíram uma temporada no Japão. Em 1998, foi diplomado como monge e, em 2007, assumiu a regência do templo em Brasília, posto que ocupou até 2022.

Mas Sato nunca deixou de falar sobre política e nunca viu a atividade como alheia ao universo religioso. Nas cerimônias que conduzia no templo, defendia a democracia e narrava com frequência os apuros que viveu no Chile.

“A democracia pode ser um sistema imperfeito, mas, enquanto não aparecer um sistema humano que seja mais perfeito, é a democracia que vale. Ditadura, nunca mais”, afirma.

Hoje Sato segue difundindo o budismo em palestras e nas redes sociais, mas não quer falar apenas a budistas – e nem só sobre religião.

“O mundo todo está em dificuldade e chegando a um abismo. Está chegando a época de transpormos as crenças religiosas e transpormos as barreiras culturais”, defende.

Nos últimos anos, Sato passou a investigar se há valores comuns às diversas culturas e religiões existentes no Brasil.

Uma de suas leituras mais recentes foi A queda do céu, livro escrito pelo xamã yanomami Davi Kopenawa e pelo antropólogo francês Bruce Albert.

Em 2020, Sato visitou aldeias do povo indígena Ashaninka, no Acre, e provou ayahuasca em uma cerimônia tradicional.

Por ter tomado uma dose pequena, diz que não sentiu muitos efeitos. “A ayahuasca tem a propriedade de não lhe fazer perder a essência da consciência, mas sim expandi-la. É isso o que todas as religiões buscam”, afirma.

Outro ponto que o impressionou na viagem foi a convivência entre indígenas e animais. “Tinha um casal de pacas e, toda vez que eu assistia ao cerimonial da ayahuasca, esse casal aparecia e ficava junto de mim”, lembra.

A relação com os bichos na aldeia o remeteu a um preceito budista – a noção de que humanos podem reencarnar como outras espécies, e vice-versa.

Sato estende a possibilidade aos dois cães com que divide a casa, a lhasa Mei Mei e o shih-tzu Kyoshi. “Os bichinhos que estão aqui, que me amam, podem ser renascimento de outros seres do passado. Como podem renascer no futuro como outros seres.”

Em outra viagem, em 2019, esteve nos arredores de Montevidéu para visitar o ex-presidente do Uruguai José “Pepe” Mujica.

Para Sato, ainda que o ex-presidente uruguaio não tenha religião, “vive como se fosse um verdadeiro budista” e segue três princípios do budismo popular japonês: agradecimento à vida (arigatai), simplicidade (mottainai) e humildade (sumimasen).

Após deixar a regência do templo, Sato passou a ter mais tempo para os dois filhos e quatro netos. Recentemente, separou-se da segunda esposa – que, também monja, migrou para uma corrente budista que lhe exige o celibato.

Hoje ele mora sozinho com os dois cães.

Aos 82 anos de idade, Sato diz acreditar que pode “morrer a qualquer momento”.

Tem medo da morte? “Não. As folhas das árvores envelhecem, caem e morrem, mas não morrem: elas servem de alimento para o novo ciclo de vida”, diz.

“Por ter passado por várias situações de morte, eu até penso na auto-morte: por que que eu estou vivendo? Por que não aproveito a onda e desapareço?”, questiona.

“O que me segura é que eu não tenho certeza se eu passei na plenitude essa minha vida aqui na Terra. Então, estou deixando que a vida continue.”