Calor excessivo, secas e chuvas torrenciais: por que Brasil poder ser um dos países mais afetados pela mudança climática

Calor excessivo, secas e chuvas torrenciais: por que Brasil poder ser um dos países mais afetados pela mudança climática

12 de março de 2024 0 Por redacao

A reportagem a seguir foi publicada originalmente em novembro de 2023 e atualizada em março de 2024.

Áreas do Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil enfrentam nesta semana (11 a 15 de março) uma nova onda de calor, segundo alerta do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), com temperaturas que podem chegar a 40°C em alguns locais.

Com a previsão de temperatura 5ºC acima da média por três a cinco dias, o Inmet inclusive emitiu um alerta de perigo pelo risco à saúde.

A nova onda de calor é a terceira de 2024 e vem depois de o ano de 2023 ter apresentado uma espécie de “amostra grátis” do futuro climático do planeta.

Só no Brasil, foram registradas no ano passado oito grandes ondas de calor, secas sem precedentes na Amazônia e chuvas torrenciais, alagamentos e deslizamentos no litoral paulista e no Rio Grande do Sul.

Muitos desses eventos extremos, como são conhecidos pela Ciência, já apareciam nas projeções feitas pelos especialistas ao longo das últimas décadas.

Também é consenso que eles estão relacionados — e são potencializados — pelas mudanças climáticas causadas pela ação humana.

Mas o que o futuro nos reserva? Como o Brasil já é e será cada vez mais afetado pelo aumento das temperaturas?

Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o cenário traz, ao mesmo tempo, grandes ameaças e boas oportunidades.

Por um lado, o Brasil certamente sofrerá com ondas de calor intensas, períodos prolongados de seca e chuvas inclementes.

Por outro, há uma série de condições e características do território que, se bem aproveitadas, representam uma série de vantagens estratégicas para os brasileiros em comparação com outras partes do mundo — como o potencial de gerar energia limpa ou de reduzir rapidamente a emissão de gases do efeito estufa.

Entenda todos os detalhes desse cenário a seguir.

Aumento da temperatura média

Os registros históricos não deixam dúvidas: a temperatura média do planeta (e do Brasil) subiu de forma consistente desde o início da Revolução Industrial, a partir de meados dos séculos 18 e 19.

“Isso se deve a uma decisão tomada a partir dessa época, quando a geração de energia passou a ser baseada na queima de combustíveis fósseis, principalmente petróleo e carvão mineral”, diz o meteorologista Gilvan Sampaio, coordenador geral de Ciências da Terra do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

A grande questão é que essa queima joga, de forma contínua, toneladas e mais toneladas dos famosos gases do efeito estufa na atmosfera — um dos principais deles é o dióxido de carbono (ou CO2).

Esses gases permanecem na atmosfera durante décadas (ou até séculos) e bagunçam a forma como o calor é dissipado. Para resumir, o resultado desse acúmulo é o aumento médio da temperatura ano após ano.

Esse fenômeno pode ser observado no gráfico a seguir, que traz dados do Brasil nos últimos 121 anos.

Em 1901, a temperatura média do país foi de 24,91ºC. Já em 2022, subiu para 25,54ºC.

Essa diferença de 0,63ºC parece pequena, mas já faz uma grande diferença no fino balanço climático do país e do mundo.

Esse aumento progressivo da temperatura gera uma série de eventos extremos, como aqueles que ocorreram nos últimos meses — que, além de serem influenciados pelas mudanças climáticas, ainda tiveram a contribuição do El Niño, fenômeno marcado pelo aumento acima da média da temperatura nas águas superficiais do Oceano Pacífico nas proximidades da Linha do Equador.

“Esses eventos estão acontecendo de forma cada vez mais frequente em todo o planeta”, observa o cientista Carlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP).

“Segundo o Copernicus, a instituição climática da Europa, 2023 é o ano mais quente já registrado não apenas nos últimos dois séculos, mas desde o período interglacial, há 125 mil anos.”

Os efeitos disso já podem ser observados na prática.

“Episódios de chuva com volume maior que 50 milímetros por dia eram raros em São Paulo até a década de 1950. Hoje, são sete a dez episódios do tipo todos os anos”, afirma Sampaio.

O climatologista José Antonio Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), destaca que o Rio Negro, na Amazônia, chegou a 12 metros de profundidade no dia 20 de outubro.

“Esse é o volume mais baixo em 121 anos de observações. Além disso, tivemos as ondas de calor muito fortes em setembro, outubro e novembro”, diz.

“Falamos de uma sequência de eventos extremos que, combinados, geram consequências e são preocupantes.”

Calorão nas alturas

O aumento das temperaturas não deve parar por aí: as projeções feitas pelos cientistas reunidos no Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas apontam que o planeta pode ter um acréscimo de 1,5ºC a 4ºC na temperatura média até o final deste século.

A meta é reduzir ao máximo essa subida dos termômetros — o Acordo de Paris, assinado em 2015, traz uma série de metas que precisam ser cumpridas pelos países signatários para cortar a emissão de gases do efeito estufa e limitar esse aumento ao mínimo de 1,5ºC.

Mas o que tudo isso significa para o Brasil?

A oceanóloga Regina Rodrigues, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), aponta que as projeções sobre o futuro climático do Brasil são um pouco incertas, porque muitos dos modelos levam em conta a realidade e as características do Hemisfério Norte (onde muitas dessas ferramentas foram desenvolvidas).

“De maneira geral, podemos projetar um clima muito mais seco para as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e partes do Sudeste, com um aumento do volume das chuvas no Sul”, diz a pesquisadora, que também representa o Programa Mundial de Pesquisa Climática da Organização Mundial de Meteorologia.

“Teremos também mais ondas de calor, como essas que tivemos ao longo de 2023.”

Segundo os dados compilados pelo Banco Mundial, esse aumento da temperatura média no Brasil vai variar bastante, de acordo com o ritmo da emissão dos gases estufas daqui em diante.

Em um dos cenários mais otimistas (em que as emissões são zeradas um pouco depois de 2050), os termômetros brasileiros passariam de 25,84ºC em 2014 para uma média de 26,67 ºC em 2100.

Já a possibilidade mais pessimista, em que as emissões globais dos gases do efeito estufa dobram, a temperatura média do Brasil em 2100 saltaria para 30,88ºC — uma diferença que ultrapassa os 5ºC em relação aos patamares atuais.

Mas por que o aumento da temperatura gera mais eventos extremos? A mudança nos padrões climáticos conhecidos e registrados ao longo de décadas e séculos modifica o fino balanço dos ecossistemas, que dependem dos ciclos de chuvas, secas, calor e frio para manter as mais diversas formas de vida.

As ondas de calor no oceano, por exemplo, fazem mais água marítima evaporar. Parte dessa umidade vai em direção ao continente e gera chuvas torrenciais — que causam enchentes e deslizamentos.

Já a elevação da temperatura em outros locais tem um efeito contrário: gera secas extremas, que matam a vegetação acostumada com certo nível de umidade e desequilibram toda a cadeia alimentar. Como mencionado anteriormente, os efeitos da estiagem na agricultura também podem ser dramáticos.

Quanto maior for esse aumento da temperatura, piores serão as consequências em termos de eventos extremos, como os calorões, as estiagens e os temporais, como apontam especialistas.

“O Brasil tem vulnerabilidades enormes. Grande parte da nossa economia é baseada no agronegócio, que sofrerá uma queda de produtividade com a diminuição das chuvas e o aumento das secas”, destaca o físico Paulo Artaxo, professor da USP.

O Brasil já é mais propenso aos eventos extremos, porque é um país tropical, explica ele.

“Um aumento de 3 ºC na Suécia pode até ser benéfico para o clima na região. Agora, 3 ºC a mais para quem mora em Teresina, Cuiabá ou Palmas pode significar a diferença entre a vida e a morte”, complementa.

Nobre lembra que essa vulnerabilidade climática também é influenciada pela condição socioeconômica do país.

“O IBGE calcula que 2 milhões de brasileiros vivem em áreas de altíssimo risco para deslizamentos ou inundações e não podem continuar nesses locais. Além disso, 10 milhões moram em regiões de alto risco”, diz o cientista.

“E sabemos que o impacto de eventos extremos é muito menor nos países que protegem melhor as suas populações.”

Como exemplo, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil citam os casos de Holanda e Bangladesh — que têm boa parte do território abaixo do nível do mar — ou de Japão e Turquia — onde terremotos são frequentes (que não estão relacionados ao clima, mas são eventos que geram grandes catástrofes).

Em ambos os casos, os impactos desses eventos (inundações ou terremotos) nas nações mais ricas e com planos de contingência (caso de Holanda e Japão) costumam ser bem menores do que nos lugares mais pobres e sem uma estrutura para proteger a população (como Bangladesh e Turquia).

Vantagens estratégicas

Se, por um lado, o presente (e o futuro) do clima do Brasil gera preocupações, a boa notícia é que a missão do país de mitigar os riscos pode ser relativamente mais fácil do que a de outras nações.

“O Brasil tem uma vantagem estratégica enorme, que nenhum outro país do mundo possui: nós conseguiríamos reduzir nossas emissões de gases do efeito estufa em 50%, pela metade, se parássemos o desmatamento da Amazônia”, diz Artaxo.

“E nós conseguimos fazer isso a um custo baixíssimo e num curto espaço de tempo.”

Nobre lembra que o Brasil pode ser o primeiro grande país a zerar as emissões de gases do efeito estufa.

Para contextualizar, as cinco nações que jogam mais CO2 na atmosfera são China, Estados Unidos, Índia, Rússia e Brasil.

Mas há uma diferença importante nesse grupo: a emissão de gases do efeito estufa dos quatro primeiros países tem a ver com a geração de energia e a queima de combustíveis fósseis (como carvão e petróleo).

Já no Brasil, como é possível conferir no gráfico a seguir, a maior parte das emissões está relacionada à agricultura, ao uso da terra e ao desmatamento.

Em termos práticos, isso significa que China, Estados Unidos, Índia e Rússia precisam fazer toda uma transição energética, abandonar os combustíveis fósseis e criar uma nova rede baseada em fontes renováveis (como placas solares, usinas eólicas, hidrelétricas…).

Isso tem um custo financeiro alto e gera impactos na economia desses países.

Já a “lição de casa” brasileira consiste basicamente em reduzir drasticamente — e eventualmente zerar — o desmatamento.

Os especialistas ainda sugerem recuperar as áreas degradadas — regiões que foram desmatadas e hoje não são usadas para nenhuma atividade comercial, mas podem ser regeneradas e virar floresta (ou campo para agricultura ou pecuária).

Energia para dar (e vender)

Outra vantagem estratégica do país está na geração de energia.

“A nossa matriz energética já é majoritariamente limpa. Cerca de 75% de nossa eletricidade vêm das hidrelétricas, que produzem um impacto no ambiente, mas que é bem menor do que o dos combustíveis fósseis”, compara Rodrigues.

Sampaio avalia que o Brasil talvez seja o país com as maiores possibilidades de geração de energia do mundo.

“Temos uma dimensão continental e estamos localizados em grande parte na região tropical, que recebe muita radiação solar durante todo o ano. Isso pode ser usado para gerar energia fotovoltaica”, propõe.

“Também temos diversas regiões do país com grande possibilidade de gerar energia eólica, principalmente no Nordeste e no Sul.”

O diretor do Inpe destaca outro fator que pode ser explorado no futuro para a obtenção de eletricidade: o movimento das marés, uma vez que o país tem uma extensa costa.

“Isso sem contar a liderança mundial do Brasil em relação aos biocombustíveis, como o etanol feito a partir da cana-de-açúcar”, complementa.

A engenheira Suzana Kahn Ribeiro, professora do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coope-UFRJ), diz que esse potencial energético pode ser aproveitado nos projetos de reindustrialização do país.

“Temos condições de atrair uma nova industrialização baseada numa economia verde, com baixo carbono, geração de emprego e crescimento econômico”, afirma.

“Precisamos de um ambiente jurídico e político estável e previsível para atrair esses investimentos.”

Nobre concorda com a avaliação e entende ser possível aproveitar a biodiversidade brasileira nessas cadeias produtivas sem gerar danos ao meio ambiente.

“Nossos biomas, a Amazônia, a Mata Atlântica, o Cerrado, a Caatinga, os Pampas, o Pantanal, são muito biodiversos. Mas essa biodiversidade ainda não tem representatividade na economia”, avalia.

“Essa nova industrialização, baseada na biodiversidade, é essencial para tornar o Brasil um país de classe média e menos desigual.”

Para isso virar realidade, Ribeiro aponta ser necessário investir em educação e pesquisa.

“Quando o Brasil decide focar em alguns setores, vira exemplo mundial. É o caso dos biocombustíveis”, diz.

“Nós temos um capital fantástico, agora precisamos de uma densidade intelectual para saber como aproveitá-lo.”

Rodrigues lembra que não há mais uma oposição entre preservar o meio ambiente e desenvolver a economia.

“As duas coisas andam juntas. O Brasil nunca foi competitivo no modelo antigo, baseado nos combustíveis fósseis”, afirma.

“A crise climática pode servir como oportunidade para que o país desenvolva tecnologias e possa virar essa nova referência.”

Adaptar é preciso

Além dos potenciais e das vantagens estratégicas, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil chamam a atenção para a necessidade de fazer adaptações e desenvolver planos de emergência.

Afinal, as mudanças climáticas até podem ser mitigadas, mas, mesmo nos cenários mais otimistas, haverá um aumento da temperatura e dos eventos extremos.

“Nós estamos muito atrasados na agenda da adaptação climática”, constata Artaxo.

“Precisamos reestruturar todo o nosso sistema de defesa civil e pensar nos impactos à saúde causados pelas mudanças climáticas.”

Um exemplo prático: na avaliação dos pesquisadores, os 2 milhões de brasileiros que vivem em áreas com risco altíssimo para deslizamentos e enchentes precisam ser remanejados com urgência, porque correm risco de morte a cada nova tempestade.

Para as ondas de calor, que ficarão cada vez mais intensas e frequentes, os serviços de saúde devem estar preparados para absorver o aumento da demanda nos pronto-socorros.

Será necessário pensar em abrigos para proteger os mais vulneráveis, como crianças e idosos.

As regiões afetadas pela seca necessitam de cisternas e reservatórios, para garantir o suprimento de água.

Agrônomos e agricultores já realizam pesquisas sobre cultivares que sejam mais resistentes às estiagens.

Cidades litorâneas devem pensar em estratégias para conter o avanço do mar — e muitas vezes, a solução está na própria natureza, com a revitalização dos manguezais, que pode servir como uma barreira verde.

“Essa não me parece uma questão de recursos financeiros, mas de uma integração de ações governamentais”, pontua Artaxo.

Ao contrário das ações de mitigação das mudanças climáticas, que envolvem negociações internacionais para reduzir a emissão de gases do efeito estufa do mundo todo, a agenda de adaptação é muito particular: cada cidade pode (e deve) desenvolver soluções próprias, baseadas na realidade local.

“Os planos de adaptação às mudanças climáticas não são apenas um documento bonito, escrito em letras douradas, que fica exposto numa prateleira”, diz Marengo.

“Ele precisa ser prático, conhecido por todos e mostrar o que fazer para prevenir ou minimizar os danos relacionados aos eventos climáticos extremos”, complementa ele.

Para Nobre, esses planos também envolvem educar e conscientizar a população sobre o que fazer para ficar mais resguardado em situações como essas.

“Por mais que os brasileiros estejam adaptados ao calor, estamos batendo todos os recordes de temperatura. A secura do ar pode causar desidratação e uma série de doenças”, explica ele.

“As pessoas precisam ser orientadas para saber como se proteger diante dessa nova realidade.”