‘Donos do poder’ ampliam captura do Estado com bilhões de reais em vantagens

‘Donos do poder’ ampliam captura do Estado com bilhões de reais em vantagens

13 de julho de 2024 0 Por redacao

[RESUMO] Em entrevista, o economista Bruno Carazza comenta seu novo livro, “O País dos Privilégios”, em que parte do clássico de Raymundo Faoro para expor como grupos poderosos, “os donos do poder”, aprofundaram nas últimas décadas seus mecanismos de extrair rendimentos e privilégios do Estado, em prejuízo da sociedade como um todo. Carazza também elenca as carreiras públicas com maior barganha sobre remunerações e as alternativas para interromper esse processo de produção de iniquidades em série.

Quase sete décadas após o lançamento do clássico “Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro”, do jurista Raymundo Faoro (1925-2003), o economista e doutor em direito Bruno Carazza expõe em novo livro como o desenvolvimento do Brasil aprofundou a captura do Estado por grupos de interesse cada vez mais poderosos.

Em conjunto ou separadamente, eles promovem uma verdadeira corrida com o objetivo de obter maiores rendimentos e vantagens da máquina pública, sempre às custas da sociedade.

Em uma espécie de manual didático e bem documentado intitulado “O País dos Privilégios – Volume 1: Os Novos e Velhos Donos do Poder”, Carazza esmiúça como magistrados, políticos e advogados públicos, entre outros, se movimentaram nos últimos anos para obter rendimentos acima do teto constitucional, de R$ 44.008,52 atualmente, entre outras benesses.

A obra é a primeira de um conjunto de três volumes, nos quais o autor pretende explorar, além da elite estatal, as vantagens recebidas pelas classes empresariais e os benefícios tributários para os mais ricos.

O primeiro livro traz desde marchinhas de Carnaval e declarações nada edificantes de magistrados em causa própria a exemplos prosaicos —como benefícios recebidos pelo Instituto Inhotim e pela atriz Regina Duarte, filha de militar— para frisar como a captura do Orçamento por grupos de interesse alongou seus tentáculos.

A obra conta ainda com a experiência do próprio autor, que atuou por 20 anos em vários órgãos do governo federal, para um mergulho na máquina de promover iniquidades em que se converteu o setor público brasileiro.

Na introdução do livro, você cita o jurista Raymundo Faoro, autor do clássico “Os Donos do Poder”, de 1958, em que ele demonstra como o patrimonialismo português se enraizou no Brasil. Quase sete décadas depois, com o desenvolvimento do país, o fenômeno tomou proporções gigantescas.

A tese original do Faoro é um trabalho monumental de ir contando a história de todo o desenvolvimento, desde a unificação do reino em Portugal, a expansão marítima, chegando aqui ao Brasil e, posteriormente, com a Independência e a Proclamação da República. Faoro aponta que tem uma característica básica desse processo de desenvolvimento, de que somos o resultado de um capitalismo politicamente orientado.

Desde o início, a expansão marítima de Portugal foi concebida como uma espécie de parceria público-privada, em que a coroa portuguesa concedia a uma elite empreendedora uma série de monopólios, concessões e direitos de exclusividade sobre aquilo que extraíssem. Primeiro na África, depois na Ásia e finalmente no Brasil.

Esses grupos econômicos de Portugal se beneficiavam em troca de um pagamento de impostos e de taxas para financiar a coroa. Essa parceria público-privada se deu por meio de uma classe aristocrática no início, que eles chamam de intermediários, que é todo um aparato estatal que foi construído à época, envolvendo militares, juízes e fiscais da coroa que fariam a administração desse empreendimento.

Com o passar do tempo, essa classe intermediária, esses donos do poder, na visão do Faoro, foram tomando as rédeas da condução do processo, que vai se adaptando ao longo da história. Ele funciona muito bem com o colonialismo português, mas quando a coroa vem para o Brasil em 1808, isso é reproduzido aqui. Continua com a Independência e, depois, com a Proclamação da República [1889], chegando até o século 20.

A análise dele vai até o Estado Novo do Getúlio Vargas [1937-1945], mostrando que esse processo vai se tornando uma elite burocrática, da estrutura do Estado, que tem esse papel muito grande de gerenciar o Estado. Ao mesmo tempo em que você continua com uma classe empreendedora, de empresários que continuam dependentes desses favores do Estado.

Partindo dessa visão do Faoro, também presente em teorias mais modernas da ciência política e da economia, vislumbrei que isso explica muito do Brasil de hoje. Veio dessa ideia tentar mapear e condensar como funciona esse mecanismo de extração de privilégios.

Isso tem origens no nosso passado ibérico, mas não se extingue com a modernização do Brasil nem com a redemocratização. Pelo contrário, é algo que inclusive se reproduz e, em alguns casos, aprofunda essa distribuição de privilégios para grupos especiais no Brasil.

No capítulo “Privilegiados de toga”, você demonstra que nada menos que 93% dos magistrados tiveram rendimento médio mensal acima dos subsídios dos ministros do SFT em 2023 [R$ 44.008,52 hoje], que deveriam ser o teto do funcionalismo. O total chegou a R$ 8,1 bilhões no ano passado —e a quase R$ 40 bilhões desde 2018. A magistratura brasileira também é cara em comparações internacionais. Quais são as principais brechas que permitem isso?

A atividade da magistratura é essencial. É quem decide causas muito relevantes para a vida das pessoas. E esses processos, em muitos casos, têm repercussões significativas. É por isso que a Constituição garante aos juízes uma série de direitos para preservar sua independência. Ela estabelece que o cargo de juiz é vitalício, salvo em exceções muito bem descritas.

Eles não podem ser demitidos e o rendimento não é passível de ser reduzido por alguma decisão do presidente da República ou de governador. Eles também não podem ser transferidos sem motivações claras. São defesas que a Constituição concedeu para preservar sua independência.

Mas a Constituição coloca uma contrapartida. Todos os Poderes, nos níveis da federação, não podem receber mais do que o ministro do STF. A Constituição optou por estabelecer isso como teto remuneratório de todo o funcionalismo e da magistratura.

Mas vemos constantemente o caso de juízes que receberam centenas de milhares de reais em determinado ano. Analisando os dados, percebe-se que existe no Judiciário uma máquina sistemática de criação de benefícios que burlam o teto constitucional, que são chamados, de modo jocoso, de penduricalhos.

Isso funciona por meio de uma série de decisões judiciais, ou mesmo administrativas, em que tribunais de todo o país acabam concedendo benefícios a seus membros. Se um Tribunal de Justiça de um estado cria um auxílio para a formação do magistrado, uma espécie de auxílio livro, outros tribunais requerem a equiparação desse benefício. E assim por diante.

A grande sacada dos magistrados foi classificar que são benefícios de natureza indenizatória, e não remuneração, para que fiquem fora do teto. Isso gera uma transferência de renda, porque são recursos orçamentários que vão para essas categorias, em valores bilionários.

Isso também é decorrência de uma peculiaridade pelo fato de a Constituição estabelecer independência e autonomia orçamentária para o Judiciário, o Legislativo e o Executivo. O Judiciário não está sujeito aos contingenciamentos que o Executivo faz.

Não há controle, porque os juízes são, em muitos casos, a última palavra sobre decisões no país. Quando tivemos a reforma do Judiciário, havia a ideia de que o Conselho Nacional de Justiça, assim como o Conselho Nacional do Ministério Público, fossem órgãos de controle externo dessa atividade. Mas, ao longo da tramitação da reforma, essas carreiras se articularam e fizeram pressão. Hoje, o Conselho Nacional de Justiça é composto, em sua maioria, por integrantes da magistratura.

O Tesouro Nacional publicou no início do ano estudo mostrando que o Judiciário brasileiro custa 1,6% do PIB, enquanto a média dos países emergentes é 0,5%; os países avançados gastam 0,3%. Há uma distorção grave no Judiciário brasileiro.

Em “Os privilegiados de terno e gravata”, você descreve uma corrida ao topo. Uma vez instituído o teto do funcionalismo (2003), praticamente todos os estamentos do setor público passaram a se mobilizar para alcançá-lo, ou superá-lo. E o Brasil se torna o “país dos concursos”, com gente atrás de benefícios. Como se dá essa corrida e o que ela já conquistou para seus participantes?

O Brasil tem um corpo de servidores públicos bem selecionado, preparado e remunerado. Mas que gerou distorções. Ter se tornado o “país dos concursos” tem muito a ver com o pós Constituição de 1988. Carreiras dos Três Poderes foram ganhando cada vez mais status e influência. E acabaram se descolando não só do rendimento médio da população e dos ganhos do setor privado, mas dentro do próprio funcionalismo.

São as carreiras judiciais, a advocacia pública, os procuradores da Fazenda Nacional, carreiras fiscais, do Trabalho e uma série de outras. Depois, os delegados da Polícia Federal, os diplomatas, os analistas do Banco Central, os auditores do Tesouro Nacional.

Recentemente, essas carreiras mais poderosas, além de tentarem se aproximar do teto, vêm tentando criar seus próprios penduricalhos. Lógico que no Executivo é mais difícil, porque o ajuste fiscal se dá sobre ele, mas elas vão tentando brechas para turbinar os rendimentos, porque estão mirando o teto e o extra-teto auferidos às carreiras do Judiciário e do Ministério Público.

Há distinções na máquina pública. Se observarmos o percurso pós Constituição de 1988, o total de servidores federais não cresceu. Houve uma expansão modesta dos estaduais e um salto nos municipais, atendendo ao aumento de tarefas repassadas às prefeituras, especialmente em saúde e educação. Mas são justamente esses servidores, na linha de frente com a população, os com menores remunerações. O que explica isso? Seria o fato de estarem mais distantes de quem controla o Orçamento?

Um ponto interessante a ser destacado é que, apesar da expansão em estados e prefeituras, o Brasil não tem mais servidores do que a média dos outros países. Cerca de 12% da força de trabalho brasileira é de servidores públicos, civis e militares. Nos três níveis. Nos EUA, são 15%. Na média dos países avançados, algo em torno de 18%.

O problema não é o número de servidores, mas a folha salarial em proporção do PIB. No Brasil equivale a 13%, ante 7% nos EUA, e entre 8% a 11% na Europa. Temos comparativamente menos servidores, mas eles custam mais caro aos cofres públicos. E se paga menos nos municípios do que nos estados, e mais na União, em que os membros do Executivo ganham menos que no Legislativo, que recebem menos do que no Judiciário.

Essa distorção é explicada pelo poder de pressão, articulação e influência dessas carreiras, que prestam assessoria e atuam diretamente com os chefes dos Três Poderes. Elas acabam extraindo para si benefícios que os servidores em contato direto com a população não conseguem obter.

Outro aspecto impressionante é como os advogados públicos se apropriaram, em ações judiciais entre o Estado e os entes privados, dos chamados honorários de sucumbência [parcela de 10% a 20% do valor de uma ação paga ao advogado vitorioso]. São contabilizados R$ 8,5 bilhões nos últimos sete anos, valor que antes entrava para os cofres públicos. Como se deu essa mudança?

A lógica do honorário de sucumbência é antiga no direito e se propunha a indenizar a parte vencedora em uma ação. Prevê que, se você ganha uma ação, o perdedor que fez você mobilizar recursos para se defender teria que indenizá-lo com o pagamento das despesas que você teve para entrar no processo.

Por um bom tempo isso funcionou. Mas aí entra essa máquina de articulação de defesas de benefícios próprios. A classe da advocacia privada, por meio da OAB, aprovou nos anos 1990 uma regra que mudou essa lógica e determinou que esses honorários de sucumbência fossem pagos para o advogado da parte.

Criou-se um privilégio para uma classe, e os semelhantes pressionaram para ter equiparação, como entidades representativas dos advogados públicos, tanto da União quanto dos estados e municípios. Assim, um valor pago à parte vencedora que antes era destinado aos cofres públicos passou a ser pago aos advogados públicos da mesma maneira que aos advogados privados.

Mas o advogado público tem uma série de prerrogativas, benefícios e direitos que o advogado privado não tem, pois é ele que paga pela estrutura de seu escritório. O público, não. O público tem estabilidade [na função]. Se o advogado privado perde a ação, ele não recebe, uma situação que não acontece com o advogado público, que tem rendimento assegurado, hoje na casa de R$ 20 mil a R$ 30 mil.

A ideia da apropriação desses honorários foi vendida como um incentivo à produtividade dos advogados públicos. Mas não faz sentido. Pois o valor conquistado é dividido igualmente entre todos os advogados. Não importa se ele é dedicado, criativo, eficiente; ou se ele é um advogado que faz tarefas meramente burocráticas. A distribuição dos honorários é equânime.

Você também trata no livro das benesses recebidas pelos militares e da ineficiência do Superior Tribunal Militar, na comparação com as demais instâncias do Judiciário. Poderia dar alguns exemplos de como isso ocorre?

A carreira militar sempre teve muito poder, principalmente depois da Proclamação da República. Todos os grandes ciclos da política brasileira tiveram os militares como um dos pilares. E esse poder foi usado para garantir um status diferenciado, de várias formas.

Um dos exemplos é o regime previdenciário muito mais favorecido. Um caso emblemático é o das filhas de militares que tinham direito à pensão dos pais, mesmo se casassem. O caso da atriz Regina Duarte ilustra isso. Ela é filha de um militar, que faleceu. Ela e seus irmãos tiveram direito à pensão. Para os trabalhadores do INSS, isso se extingue aos 18 ou 21 anos, o que não acontecia com filhas dos militares.

Isso mudou numa reforma feita pelo Fernando Henrique [Cardoso] no fim da década de 1990, mas é algo que ainda vale para quem já tinha o benefício. Mesmo assim, na comparação com o INSS e a Previdência dos servidores civis, a dos militares é a que paga o maior benefício médio.

Já a Justiça Militar é algo que não existe em praticamente nenhum outro país. É um resquício do período de Portugal e do Império. Essa justiça também é composta, em sua maior parte, por egressos das Forças Armadas. Isso acaba colaborando para que, em processos criminais, haja um certo corporativismo nas decisões. Muitas vezes, militares não são punidos com todo o rigor da lei, o que gera uma sensação de impunidade para a sociedade. É um ramo de justiça muito caro, pelo volume de processos que julga.

O movimento mais recente é o de como os congressistas em Brasília conquistaram bilhões de reais do Orçamento com emendas, para além dos vencimentos básicos de R$ 44 mil que recebem mensalmente e das cotas de até R$ 51,4 mil para custear suas atividades. No caso das emendas, com a pulverização de bilhões de reais entre os deputados, há também uma enorme perda de eficiência na adoção de políticas públicas estruturadas, não?

As emendas complementam um kit de vantagens que os políticos, principalmente no Legislativo, têm, para além da cota parlamentar e dos recursos dos fundos partidário e eleitoral. Isso gera uma série de distorções. A primeira é o desequilíbrio do jogo, porque se o parlamentar tem acesso a alguns milhões de reais do orçamento público para aplicar segundo sua indicação, é óbvio que vai usar isso em benefício próprio para fins eleitoreiros.

Isso distorce a competição, que já é distorcida pelo próprio exercício do mandato, combinado com os valores dos recursos do fundão eleitoral. Com as emendas, eles têm maiores chances de ser reeleitos e se perpetuar no poder. É uma barreira para a oxigenação da política.

Mas a distorção mais grave talvez esteja mesmo na eficiência do gasto público. Além de não haver transparência na aplicação dos recursos, há muita possibilidade de desvios, algo que nem o fim do orçamento secreto resolveu. Esses recursos são pulverizados na mão dos parlamentares, sendo distribuídos para suas bases eleitorais. Isso torna muito mais difícil a fiscalização pelos órgãos de controle, pela sociedade e pela imprensa, o que favorece casos de corrupção.

Quais alternativas a sociedade tem para interromper esse processo geral, quando os donos do poder são justamente aqueles que o controlam?

Há uma agenda em que podemos avançar. Uma primeira medida, que não precisaria nem de mudança constitucional, é que se recupere a autoridade do teto remuneratório no serviço público.

Para isso, seria necessário um posicionamento do STF de simplesmente dizer que todos esses penduricalhos não são indenizatórios, mas remuneratórios. Bastaria uma interpretação do Supremo para acabar com a farra de criação de penduricalhos, que nada mais são do que aumentos salariais.

Um segundo ponto seria repensar o poder que o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público têm de deliberar administrativamente sobre os rendimentos dos seus membros. Isso só faria sentido se eles fossem efetivamente um órgão de controle externo, com membros exclusivamente de fora da carreira, indicados pela sociedade civil.

Precisamos também desmistificar a discussão sobre reforma administrativa no Brasil. Ela está muito centrada na questão da estabilidade do serviço público e de reduzir o tamanho do Estado. Os números indicam que não temos excesso de servidores públicos. Mas precisamos repensar a estrutura das carreiras e enxugar seu número.

Seria preciso, nos três níveis de Poder, uma estrutura o mais unificada possível de carreira, pensando em um salário de entrada mais baixo e um salário de saída, de topo, que vai ser alcançado ao longo dos anos, mediante avaliações periódicas de desempenho, qualificação e métricas de entregas para a sociedade.

É preciso rediscutir os pilares, e não necessariamente o tamanho do Estado. Avaliar os incentivos presentes no Estado para que possamos cumprir esse objetivo. Para que tenhamos servidores motivados, focados no exercício de suas atribuições, nas entregas para a sociedade. E não servidores que dedicam boa parte de sua energia para extrair benefícios em detrimento dos demais, em prejuízo da sociedade como um todo.

Bruno Carazza, 46

Mestre em economia pela UnB e doutor em direito pela UFMG. Servidor público de carreira (licenciado), trabalhou no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e em diversos órgãos do Ministério da Fazenda. Autor, entre outros, do livro “Dinheiro, Eleições e Poder: As Engrenagens do Sistema Político Brasileiro” (Companhia das Letras, 2018).

O País dos Privilégios – Volume 1: Os Novos e Velhos Donos do Poder

Preço R$ 80 (336 págs.); R$ 44,90 (ebook)

Autoria Bruno Carazza

Editora Companhia das Letras